domingo, 26 de dezembro de 2010

O Recinto

Para Lygia Fagundes Telles

Ele passou esbaforido pela porta, rodou as chaves na fechadura e entrou com um sorriso cerrado nos lábios enquanto os movia levemente repetindo a mesma história até se convencer. Cruzou rapidamente os olhos pela sala, subiu as escadas, foi até o quarto dele e da mulher. Ninguém. Desceu novamente os degraus gritando quase sobriamente: - Edith, meu amor, onde você está? A mulher respondeu de um lugar mais profundo da casa, com uma voz lânguida e arrastada, como se não conseguisse falar: - Aqui, Daniel. Estou na cozinha, lavando a louça. Ele então entrou apressadamente no recinto, beijou-a nos cabelos, soltou a pasta na mesa, respirou fundo, liberou o sorriso e começou a contar que havia conseguido fechar o negócio com os indianos e que a empresa lucraria 20 bilhões de dólares em cinco meses, ultrapassando a meta prevista. Tentando fazer-se presente, ainda de costas e com o olhar fixo no sabão que escorria entre os dentes do garfo, ela esboçou, sem separar os lábios, dizer um: – Que-bom-amor-Parabéns.
Não sabe se ele chegou a ouvir, posto que continuou a agitar as mãos no ar e a explicar toda a transação no seu bom “economês”:

- $$=% (k*p)&(l-m). $$$++ ∞. ó $!= $∞

Depois de liberar todo o seu regozijo, lembrou-se da presença de Edith.

– Amor, você não está feliz? Não falou nada até agora.

- Já disse que acho ótimo, Daniel.

Ele, num ímpeto de raiva, resmungou:

- Você não dá importância a nada que faço. Eu aqui contando uma novidade que vai nos permitir, ao menos, umas boas férias na Europa e você assim, calada como uma pedra. Parece que está morta.

- Sua percepção não é tão ruim. Talvez eu esteja morta.

- Vá para o inferno, Edith.

- Não posso estar no mesmo lugar duas vezes.

- Essa sua tristeza não tem fim, Edith?

Ela virou-se, deixando que a água continuasse a escorrer entre os seus dedos. Com os olhos secos e sem brilho, fitou-o, pediu perdão e disse que estava muito alegre com os negócios que ele acabara de fazer. Mas que como estava acostumada ao silêncio e à solidão, precisava de um certo tempo para reaprender a falar.
Pensou que se talvez ele ficasse um pouco mais no trabalho...



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